A virada de ano foi interessante para Carlos Lombardi e os fãs de sua obra. No dia 28 de dezembro finalmente estreou nos cinemas brasileiros Mamonas Assassinas — O Filme, roteirizado por ele há anos; e no dia 2 de janeiro, o seu texto ágil e sarcástico voltou à TV aberta através da reprise de Pecado Mortal na TV Record.
No meu caso, já tenho a minha dose diária de texto do Lombardi desde o ano passado quando comecei a rever suas obras pelo Globoplay. Após Quatro Por Quatro — sobre a qual fiz uma review aqui — , a escolhida foi Uga Uga.
A novela
Dentre as novelas do Lombardi que assisti na infância, Uga Uga era a que eu menos tinha lembrança. Eu lembrava de algumas cenas e tramas específicas e do crush que eu tinha na Bionda, mas quase nada além disso. E isso foi bom, porque eu pude me surpreender com várias reviravoltas da novela e assisti-la sem tanto peso da memória afetiva afetando meu julgamento.
Uga Uga foi uma novela de gestação demorada. Carlos Lombardi conta que entregou em 1998 a sinopse de um homem que tenta retomar sua vida após fingir-se de morto, mas que ela foi rejeitada. No ano seguinte ele juntou essa sinopse à história de um garoto branco criado numa tribo indígena.
O homem dado como morto virou o Sargento Bernardo Baldochi e o “índio branco” virou Tatuapu e, então, Uga Uga foi aprovada… para o horário das seis.
Sim, a novela mais “novela das sete” da História das novelas das sete quase foi uma novela das seis. Para a sorte do Lombardi, após uma dança das cadeiras na fila de horários a trama dele foi descolada para as sete.
Ou seja, Uga Uga teve um processo de pré-produção mais demorado do que Quatro Por Quatro (vamos ignorar Vira Lata por aqui, o próprio Lombardi já fez isso), o que fica nítido ao comparar as duas.
As ações de Quatro Por Quatro iam acontecendo aleatoriamente, sem muito foco, típico de uma novela criada às pressas. Uga Uga é mais bem estruturada: tramas que só aconteceriam mais à frente são prenunciadas vários capítulos antes, resultando em uma novela mais redonda.
Mas assim como Quatro Por Quatro e outras novelas do Lombardi, Uga Uga se apoia fortemente em esquetes cômicas. Com exceção da trama de Bernardo Baldochi, os outros núcleos funcionam a partir de situações engraçadas que perduram por alguns capítulos até aparecer outro acontecimento mais absurdo envolvendo os personagens.
Uga Uga não possui um grande vilão, mas sim uma galeria de vilões que vão se revezando no foco da novela, tal qual um gibi do Batman ou do Homem-Aranha: Turco, Santa, Rolando, Mutuca e vários outros, alguns que você nem imaginaria se tornarem vilões.
Muitos diriam que esse tipo de novela pautada em esquetes não funciona hoje em dia, mas devo lembrá-los que Mar do Sertão foi um sucesso recente do horário das 18h fazendo exatamente isso. No fim, é tudo sobre o quão bem o elenco está em seus personagens para conquistar o público pelo carisma e se teve algo que não deixou a desejar em Uga Uga foi o elenco.
Elenco esse que contou com a boa direção de Wolf Maya. O estilo trash do diretor casou perfeitamente com o texto ágil e popular do autor. As novelas lombardianas são cheias de tesão e Maya é um dos poucos diretores que consegue explorar os corpos masculinos e femininos do elenco sem qualquer pudor. Não por acaso, a parceria se repetiu em O Quinto dos Infernos e Kubanacan.
A abertura é uma das mais memoráveis dos anos 2000: uma folheada dinâmica numa revista em quadrinhos contando a “história de origem” de Tatuapu ao som da igualmente dinâmica “Kotahitanga”.
O mesmo não se pode dizer da trilha sonora. Esquecível e, por vezes, equivocada. Por exemplo, a escolha de uma música da já velha banda Roupa Nova para o jovem casal Tatuapu e Bionda era tão ridícula que eu caía no riso do vez que ela tocava.
Tudo isso dito, vamos dar uma olhada nos núcleos da novela.
Baldochi
Bernardo Baldochi era uma sargento do exército que se envolveu em um assalto por conta de um primo. O assalto dá errado e ele precisa forjar a própria morte para fugir de Turco (Luiz Guilherme), mandante do crime que passa a ameaçar a família de Bernardo e sua noiva, Maria João.
Acreditando que Turco está morto, Baldochi volta ao Rio de Janeiro para tentar provar sua inocência e retomar sua vida. O curioso é que, tirando a própria família e a família da ex-noiva, NINGUÉM no Rio de Janeiro parece conhecer o antigo sargento, já que ele anda pelos lugares sem disfarce nem nada. Era só questão de tempo até o irmão e a mãe o encontrarem.
As coisas ficam mais interessantes quando Baldochi cria a identidade de “primo Bento”.
É aqui que a influência das histórias em quadrinhos em Uga Uga fica mais evidente: qualquer um que já tenha lido um gibi mais antigo do Superman vai perceber que a dinâmica entre Baldochi e Maria João é idêntica à de Clark Kent e Lois Lane, em que ele tenta esconder da mulher amada a sua “identidade secreta” enquanto ela tenta provar que esse sujeito atrapalhado de óculos é na verdade aquele herói másculo e imponente.
As esquetes do primo Bento permitiram que o casal protagonista passasse a interagir mais entre si… o que tornou Maria João ainda mais chata.
As heroínas lombardianas são tipicamente indecisas quanto aos seus amados. Mas enquanto Lola e Babalu tinham os seus momentos longe dos conflitos amorosos, a vida da Maria João está totalmente centrada no Baldochi. Não havia um aspecto da personagem que não estivesse ligado à sua relação com Bernardo. Raramente se via alguma cena em que Maria João não estivesse pensando ou falando sobre o seu “sargento”, e quase sempre em tom de lamentação, para tornar tudo pior.
Por exemplo, Maria casou-se com Beterraba (Marcello Novaes) a fim de esquecer o grande amor da sua vida. Mas parece que o órgão genital do sargento possuía poderes mágicos que tornaram Maria João incapaz de parar de pensar nele por um minuto. Ela dá pouca atenção ao Beterraba e nem consegue transar com o próprio marido!
Era de se esperar que as coisas melhorassem quando ela descobrisse que Baldochi estava vivo, e num primeiro momento de fato existe uma melhora, mas logo voltamos à nossa programação normal e a personagem encontra novas formas de nos irritar. Maria decide continuar casada com o Beterraba porque… bem, por algum motivo que não consegui decifrar.
Até que Baldochi decide ir embora para deixar a amada seguir em frente, aí ela se separa de Beterraba e vai atrás do sargento!
São várias e várias decisões ilógicas seguidas, capazes de deixar qualquer mocinha de Walcyr Carrasco com inveja. Sério. Quando eu achava que já não tinha como a Maria João inventar um novo empecilho pra própria vida, ela decide não contar ao Dinho que é a mãe dele, depois que todo mundo já descobriu!!!!!
A personagem irrita tanto que eu não consegui me ver torcendo pelo casal, apesar da química entre os atores. É uma pena porque a composição que a Passmanter deu para a Maria era muito boa, o erro estava nos plots mesmo.
Tatuapu
O fato de ter sua história contada na abertura, nomear indiretamente a novela e ser o personagem mais lembrado até hoje podem te fazer acreditar que Tatuapu é o herói desta história. Mas não é.
E não estou dizendo que ele é “menos que o protagonista que o Baldochi”. Ele simplesmente não é protagonista, ponto.
Durante os primeiros sessenta episódios ou mais, podia-se dizer (com alguma boa vontade) que Tatuapu dividia o protagonismo com Baldochi, mas isso para de vez depois que Tatuapu permanece na casa de seu avô Nikos (Lima Duarte, impecável num papel cômico).
Os conflitos de provar ser neto de Nikos, adaptar-se à realidade da cidade e assumir os negócios da fábrica de brinquedos foram todos deixados de lado e o personagem se limitou a esquetes cômicas e ao triângulo amoroso com Bionda e Guinevere.
As esquetes nem eram protagonizadas por ele por sinal, mas sim pelos outros personagens em situações que o envolvem de alguma maneira. Já o triângulo amoroso não é dos melhores porque o romance com Bionda é muito mal desenvolvido. Se é que podemos chamar de romance: os dois mal falavam entre si e a relação parecia estar limitada a uma atração sexual.
Guinevere tinha a vantagem de ser interpretada por Nívea Stellman, que já havia feito um par bem-sucedido com Cláudio Heinrich em Malhação. O problema é que o Lombardi faz questão de que Gui não tenha o mesmo destaque quase protagônico de Bionda e fica difícil se apegar à personagem vendo tão pouco dela. No começo, a filha de Anísio (Tato Gabus Mendes) tinha apenas duas funções: orelha de Brigite (Betty Lago) e segunda opção do Tatuapu. Com o tempo, a amizade com Brigite foi deixada de lado e Gui só aparecia em cenas com o Tatuapu junto.
No fim, nem o principal conflito de Tatuapu funcionou e os núcleos “principais” não me empolgaram muito. Mas isso não quer dizer que eu não gostei de Uga Uga. Porque nem só de núcleo principal se faz uma novela e Uga Uga esteve recheada de bons personagens…
Os outros núcleos
É fácil ver o porquê da popularidade de Bionda na época. A personagem era o arquétipo de Gen Z irritante antes mesmo da geração Z nascer. Mariana Ximenes teve dificuldade com o texto do Lombardi no começo, mas logo se encontrou.
Bionda também teve outros pares românticos na novela. O primeiro deles é Salomão, o detetive atrapalhado maravilhosamente interpretado por Ângelo Paes Leme.
Bionda e Salomão são o típico casal gato-e-rato que Carlos Lombardi é especialista em criar. Mariana Ximenes e Ângelo Paes Leme esbanjaram química em cena, tanto que se o autor quisesse ele poderia facilmente transformá-los no novo “Raí e Babalu”…
…mas ele não quis. Porque além de Tatuapu, Bionda ainda se interessa pelo primo de Salomão, o policial Amon-Rá (Marcelo Faria). A dinâmica gato-e-rato de Bionda e Salomão passa a ser de Bionda e Amon-Rá, mas sem o mesmo carisma.
Não tenho muita coisa a dizer do Amon-Rá, mas o Lombardi parece ter gostado muito do personagem porque ele vai ganhando tanto destaque na reta final que todos os plots que eram do Salomão são tranferidos para ele enquanto o pobre Salomão vai perdendo mais e mais destaque até ficar vários capítulos sem dar as caras. Uma triste derrota para nós do #TimeBiomão.
Ainda tem a família de Bernardo Baldochi, formada pela mãe Pierina (Nair Bello) e o irmão Casemiro “Van Damme” (Marcos Pasquim). Dona Pierina era a típica mamma ranzinza que Nair Bello era especialista em criar. Nós já a vimos fazer esse papel antes e ainda veríamos depois, mas nos apaixonamos por ela todas as vezes.
Van Damme era a novidade aqui. E aos poucos ficou nítido o porquê Marcos Pasquim se tornou o herói lombardiano definitivo a partir daqui.
O personagem começa com pouco destaque, mas o carisma que Pasquim imprime a ele, somados à sua habilidade com o texto do Lombardi nas cenas de ação, drama e comédia fazem com que, para esticar a história na reta final da novela, Lombardi utilize uma série de esquetes cômicas centradas no Van Damme, tornando-o essencialmente o segundo protagonista da novela.
Outra que se tornou favorita do Carlos Lombardi a partir desta novela foi Daniele Winits, intérprete da loira burra Tatiana. O timing cômico da atriz estava tão impecável que conseguia tornar qualquer cena mais engraçada só pela presença de Tatiana. Seu par romântico com Marcos Pasquim também deu certo, tanto que se repetiu posteriormente.
Como os conflitos de Tatuapu foram reduzidos ao campo amoroso, Nikos (Lima Duarte) não teve lá sua grande relevância na trama da novela, ficando relegado a situações cômicas. Não que isso tenha me incomodado. Lima Duarte é Lima Duarte, um ator excepcional em tudo que se propõe, seja na comédia ou no drama. E fica melhor ainda dividindo cena com Tato Gabus Mendes, Vera Holtz e Geórgia Gomide. Puro ouro.
Por fim, a queridinha de Carlos Lombardi não poderia faltar. Betty Lago interpreta Brigite, uma aeromoça muambeira que se envolve em todo tipo de problema. É a desculpa perfeita para a personagem estrelar esquetes que, na maior parte do tempo, não se conectam ao resto da novela. O núcleo da Brigite fica tão avulso em meio aos outros que é quase como se fosse uma sitcom no meio da trama.
Ao longo da novela, Brigite vai parar em outros núcleos e a Betty Lago ainda ganha uma nova personagem, a tímida Alice. São provavelmente os papéis mais esquecíveis da atriz em novelas do Lombardi, mas ainda assim Betty Lago consegue garantir bons momentos.
Veredito
Assistir Uga Uga logo após Quatro Por Quatro foi um exercício interessante. Ao comparar novelas, muitas pessoas enumeram as qualidades e defeitos para determinar qual a melhor, mas acompanhar histórias vai muito além disso.
Uga Uga não teve nenhum personagem que me irritasse tanto quanto Clarice, Pedrão e Paula, mas também nenhum com o carisma colossal de Babalu, Raí ou Bibi. Apesar de Quatro Por Quatro ser mais “defeituosa”, a atmosfera criada por ela conseguiu me envolver mais. A trilha sonora era inesquecível e a direção do Ricardo Waddington era primorosa.
Ainda assim, não há muito como errar quando se une o talento de Carlos Lombardi em criar personagens cativantes a um elenco tão afiado. O sucesso estrondoso da novela não foi à toda.